Quem conta um conto…
Uns dizem que a dita cuja serpente descansa mansamente com a sua cabeça bem embaixo do altar da Igreja da Matriz e seu corpo se estende até a Igreja do Carmo tornando-a assim, um monstro realmente grandioso. Outros mais audaciosos vão além e dizem que seu rabo chegaria até a Igreja Matriz de São Carlos, fazendo então, uma conexão macabra com a cidade vizinha (são uns 40 quilômetros de distância). Não é de se admirar que se associem as duas cidades, sendo que, especialmente em relação ao assunto Igreja, sempre houve uma disputa megalomaníaca entre as duas.
A Igreja Matriz de São Bento é a quinta igreja a ser levantada no mesmo terreno. A primeira foi construída em 1817 e não era muito mais que um casebre com uma cruz em cima. Rodolpho Telarolli, finado historiador araraquarense, em um texto lamenta a destruição da quarta Igreja que, segundo ele, não era tão alta quanto a atual, mas muito mais harmoniosa com a praça. Isso aconteceu por que não se admitia que a Matriz de São Carlos fosse mais alta que a de Araraquara. Pode?
A praça da Matriz, recebeu o nome São Bento em homenagem ao primeiro Barão de Itú, Bento Aguiar de Barros, que foi quem intercedeu pela ainda então “freguesia” junto às autoridades eclesiásticas da época para a construção de uma capela ali. Até então, os fiéis tinham que ir até Piracicaba (Igreja mais próxima) se quisessem se confessar, rezar ou somente jogar conversa fora com algum pároco. Foi ele também quem doou a imagem de São Bento à recém inaugurada capela. O nome do largo e o mito da serpente também remete às nossas raízes lusitanas. São Bento é invocado pelos religiosos para afugentar cobras, é um santo que exerce um domínio sobre esse animal de sangue frio e, tomando por esse lado, estaríamos protegidos de supostos ataques desse carnívoro. Em suma: nosso santo é forte.
Araraquara não é nem de longe, original no quesito serpentes. Antes dela, já houve registros de lendas semelhantes envolvendo Igrejas e serpentes em Minas Gerais, por exemplo. Existem anacondas gigantescas no subsolo das matrizes de Ouro Preto, Catas Altas e Mariana que também assombram e enfeitam o imaginário popular de seus moradores.
Ainda sobre o tamanho de nossa píton, há versões de que ela estaria enrolada sobre o chafariz, ficando assim, impossível de se dizer com precisão, seu comprimento. Ela teria, na imaginação de muitos, a cara daquelas figuras que dormem ao pé do chafariz, têm corpo de peixe, e lembram um pouco Delfim Neto de ressaca. É sabido também que toda vez que ela se ajeita em seu submundo (convenhamos que não deve ser muito confortável morar embaixo da terra), aparece uma rachadura nova nas paredes da catedral, devido ao leve abalo sísmico que a serpente provoca.
Imaginemos então que São Bento, com seus poderes milagrosos, não consiga derrotar tal monstro quando a conclusão das obras chegar. E agora? Bom, nos acalmemos pois ainda resta uma salvação e ela virá do céu.
Não menos polêmicas e controvertidas, são as histórias envolvendo uma tal águia que devorará a serpente e preservará nosso patrimônio religioso intacto. Essa águia, para alguns, seria a própria estátua que vive a posar para as fotos, imóvel, acima do chafariz, e que ganhará vida, matará o gigante verde e depois saciará seu apetite de décadas, comendo as entranhas da serpente de almoço. Fascinante mas… um pássaro de um metro poderá tal façanha? Matar a anaconda agigantada?
Há quem diga que a águia seria a própria matriz que, como num efeito especial hollywoodiano, começaria a se mexer, criaria penas, bico e tudo mais a que uma águia tem direito, ajeitaria suas asas e ganharia o céu, dando rasantes sobre a nervosa cobra. Seria um pega-pra-capar violento, mas a enorme águia (a essa altura já poderia ser chamada assim. Mesmo mantendo a aparência de tijolos e cimento), sairia vitoriosa. Ela e todos nós. Perfeito. Só não confirmam se ela, a águia, voltaria e ser a Igreja de antes, imóvel e com rachaduras, ou se ela se acostumaria com a liberdade de águia e fugiria, planando por aí. Imaginem que conversa interessante teriam por rádio, os pilotos de aviões das cidades próximas:
-Alô câmbio! Acabo de avistar um objeto voador não identificado. Me parece um pássaro de tijolos gigante. Me permita dizer que parece uma Igreja voadora… -Não senhor, não bebi nem uma gota…
Outra hipótese é que a águia moraria embaixo do chafariz, assim como a cobra que, nesse caso, estaria alojada sob a Igreja e com o chocalho apontado para a Igreja do Carmo. As duas figuras mitológicas emergiriam simultaneamente e travariam ali mesmo sua batalha de vida ou morte. O que a lenda não explica é como que a serpente brotará da terra bem embaixo da catedral sem que ela destrua a Igreja ao levantar porque, se a destruir logo ao sair da terra, seu trabalho estaria concluído sem esforço e a águia ficaria muito desapontada.
Mito desmascarado
Existe uma maneira bem simples e lógica de se constatar se o mito é verdadeiro ou não: concluindo as obras da catedral.
Seria incrível se isso acontecesse, não? Um século de boatos e crendices iriam abaixo, de uma maneira ou de outra. Se nada acontecesse, os mais céticos diriam que ainda faltaria alguma coisinha aqui, outra ali e ao final não ficaria pronta nunca mesmo. E se realmente surgir tal monstro logo após a última pincelada da última mão de tinta, bom, aí será um pernas-pra-que-te-quero. O exército invadiria as ruas da cidade com seus tanques e provavelmente veríamos cenas como as profetizadas pelo criador de Godzila. Mas a verdade é uma só: não há dinheiro para tanto. E talvez seja melhor que não haja mesmo.
Há um projeto de finalização sendo orçado agora ou melhor, sempre houve projetos com esse intuito que nunca se realizaram por falta de verbas. Chega até a ser conveniente a existência de tal mito. Isso justifica e ameniza a dureza financeira.
Aos católicos, aos espíritas, aos protestantes e a todo tipo de religioso ou não, a Matriz de São Bento é um símbolo ecumênico da cidade. É uma obra belíssima e seria mesmo uma pena se tal serpente a destruísse. Talvez por prudência, poderíamos contratar um flautista que tenha o poder de acalmar tais feras e que tocasse dia e noite seus acordes de flauta doce para a serpente. Assim quando ela despertasse de seu sono macabro, pelo menos já estaria amansada e facilitaria o trabalho do santo e da águia.
Texto de Lucas Lima
Fonte: http://www.ocaricato.com.br/
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